terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Morte - José de Anchieta Corrêa

"Só quando a morte leva alguém que amamos é que somos submersos pela violência da perda e mergulhados nas trevas da dor e da tristeza. A morte do outro - próximo ou amado - acorda em nós o horror desse absurdo, desse indizível, e então nos imerge na dor e nos cobre de luto.

Por essas vias, o real da morte é, por obrigação, por toda parte encoberto e velado. Os atingidos diretamente pelo drama logo são obrigados a se ocupar com tarefas burocrático-administrativas e a cumprir ritos e regras que acabam por lhes diatrair da presença do corpo que não mais responde às perguntas que lhe são dirigidas. Diante desse corpo rígido e frio, no caixão cercado de velas, é preciso contenção e recolhimento. Não bastasse esse doloroso exercício, é também necessário dar atenção a tantas mãos que tocam os que velam o defunto e dar ouvido a votos protocolares de consolo. Se a vista se estende mais longe, o que se vê é o burburinho dos amigos e conhecidos presentes em uma animada tagarelice, estratagema que livra os vivos de se converterem à cena da morte ali presente.

Na volta para casa, na solidão, poder-se-á então chorar a perda do ente que se foi. Mesmo assim, é de bom-tom fazê-lo discretamente, pois não se deve incomodar os amigos e os vizinhos. E a vida continua. Esse ocultamento ou recalcamento pessoal e social da morte cobra um preço extremamente elevado para os homens de nosso tempo, impedindo-os de desvelar as paixões profundas que emergem desse inusitado e universal acontecimento. Daí, para muitos resultam sintomas de neurose, manifestação de desespero e mesmo sentimentos de violência contra a vida. Para outros, a saída é recorrer e se abrigar no mundo dos mitos e da magia.

Sendo o homem sempre surpreendido pela morte, ela acontece quando menos se espera. Esta aparente e estranha circunstância faz dela o 'hóspede inquietante de todas as festas da vida', razão pela qual importa menos conhecer seu caráter inelutável e fatal do que compreender seu laço com a vida, descobrindo que nossas concepções de vida e de morte se intercambiam e nos convidam a conhecer simultaneamente a morte para o homem e o homem para a morte."
(CORRÊA, José de Anchieta. Morte. São Paulo: Globo, 2008. pp 18-20.)

(postado por Renata Pimentel)

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